quarta-feira, 27 de julho de 2016

Graças matinais

A criança dorme enquanto uma gata prenha ronrona a meus pés.
Os gatos de rua fartam-se da caridade de uma alma boa.
A samambaia agradece a água esticando suas folhas.
As boninas preparam-se lentamente para o espetáculo das suas flores vespertinas.
A rosa-do-deserto aguarda o sol que irradia os raios luminosos, lânguidos, que esgueiram-se por qualquer fissura no telhado, imponentes como o amor que trespassa o coração mesmo em tempos de angústia.

E eu aqui, agradeço...
Agradeço...
Por usufruir dessas mínimas peças do quebra-cabeça da felicidade que se faz em frações  e não no todo.
E entre essas partes, eu e você - vidas que se encaixam e se complementam, inteiras em si, porém, pedaços de algo maior que só quem sabe contemplar o simples o alcançará.






Milagreiro

Pequenos milagres acontecem a todo momento:
Na semente que bebendo água ativa o mecanismo da projeção da frágil raiz que será seu "cordão umbilical" pelo qual irá nutrir-se do alimento provido pela mãe Terra;
Na flor que desabrocha, pontualmente, marcando o tempo da contemplação e da festa das abelhas e borboletas;
No novo ser gerado no ventre de qualquer animal, que no impulso pela perpetuação da espécie oferece ao mundo um pouco de si, no olhar do filhote que virá.

Os milagres nos cercam continuamente e, mesmo quando deixamos de acreditar, eles explodem em nós:

No pulsar da dança que inicia ao batuque de um coração;
No alimento, que preparado com amor, serve para além do corpo físico,  fortalecendo a alma com toda a boa energia que lhe foi empregada;
No redescobrir-se e enxergar em si as potencialidades que fazem o extraordinário e único "eu".

Milagre é compreender que somos mortais mas fazer da vida uma mola propulsora em todos os momentos. Aproveitar o tempo que nos é concedido nesse mundo e agradecer por poder vislumbrar as maravilhas que nos alcançam, da imponência de um mar azul à simples e pequena folha de manjericão.




Madruga-me


Quando a chuva caiu inundou o ar do cheiro de terra molhada, como se fosse, caprichosamente, borrifado o melhor perfume no cangote da madrugada. Tudo para que amantes com insônia pudessem inspirar seus atos de paixão.
O frio que tomava o ambiente externo não se fazia presente sobre os corpos seminus dos apaixonados, que murmuravam seus gemidos ao toque certeiro na morada dos seus desejos.
A mágica do momento acendeu a chama dos corpos - o fogo ardente que não queima nem passa.
Depois, tranquilos, porém, ofegantes da doce jornada do prazer numa atmosfera orvalhada, renovaram em si a força vital da energia que alimenta a alma, protegidos e acalentados em abraços de adormecer à margem da calmaria dos seus lençóis.

Amnésia


Hoje estou sem inspiração... 
Porque não consigo me lembrar da maciez e do perfume dos seus cabelos...
Esqueci o quanto são lindos e expressivos seus olhos castanhos,  o quanto são doces seus longos cílios e as suas marcantes sobrancelhas...
Nem lembro seu nariz afilado que mais parece uma escultura geométrica...
Nem sei mais da sua boca com seu alvo sorriso, emoldurada por seu cavanhaque de Quixote que denuncia um pouco de sua história em alguns fios brancos...
Parece que esqueci seu cheiro de macho, seus braços fortes, suas pernas torneadas...
Como é mesmo seu colo, que me acolhe, onde me encaixo nos momentos de paz e prazer?
O conforto do seu toque e o abrigo do seu abraço de urso, como são?
Não, não lembro, esqueci... 
Esqueci que você é moreno, alto, másculo...
Esqueci até do seu nome que rima com manhã, romã, vã...
Quando você voltar, me lembra?
Quero escrever uma poesia pra você.

Fluido alívio

Do cerne do ser brotam os mais diversos sentimentos, às vezes em confusão e às vezes tão claros quanto a albina face da manhã.
Quando esses sentimentos ultrapassam o campo da emoção, buscam escape pelo corpo, porém, a duras penas, represados, tornam-se torrente bravia que não cabem no peito e lutam como gladiadores até conseguirem se manifestar.
Tomado por esses sentimentos, de gênese inconsciente e agora elucidados no emaranhado das sinapses, o corpo os expressa fluidamente, em lágrimas ou suores, em soluços entre sorrisos, gemidos, suspiros e outras manifestações por vezes incompreensíveis a quem não vive essa experiência em si.
Pra quem vive em repressão, deixar escorrer de si essa tempestade, mesmo nos momentos mais improváveis é um alívio sem medida.
O estranhamento é inevitável, mas a esse nível de entendimento e constantes feedbacks, nada vem a ser negativo.
É tempo de libertação. 
E está tudo em paz, mesmo que o pranto rasgue o véu da noite num instante de prazer.





Telhado de vidro

Difícil é prever as surpresas que a vida pode nos proporcionar. Se num instante tudo é calmaria, num simples encontro de olhares o fulminar de uma paixão pode tomar conta de toda a extensão do corpo, figurando na mente o doce sabor do encantamento, a beleza do paraíso num sorriso espontâneo e num terno e delicado toque.

Como coibir a paixão? 
Como fugir à teia à qual se emaranha por prazer? 
Como negar a vida pulsando em si, querendo viver? 
Como julgar algo tão despretensioso? 
Como se esconder dos olhos-faróis que nos guiam ao mel ou ao fel, ao céu ou ao inferno, à salvação ou à perdição? 

Livre, não se mede ,não se pensa, e, o convite ao mergulho no mistério abissal é irrecusável. Não-livre, o dilema entre arriscar-se ao mar bravio e recolher-se na segurança de um porto seguro é a via crucis do apaixonado.

O que fazer? 
Para onde ir? 
Se o desejo arde à pele e entorpece os sentidos fazendo se perder o juízo e sufocar um grito de êxtase na garganta? 
Como se entregar sem deixar de ser inteiro em outra relação? 
Como conviver com o temor de ver desfacelar o castelo construido com flores e pedras ao qual se fazia abrigo nos dias de solidão?

Ao desenrolar da história ninguém sai intacto, não há quem não saia ferido como pássaro apedrejado, agonizando na dor de se machucar e machucar a quem se ama pelo impulso inocente a uma travessura do acaso. Mas, se é por acaso que as coisas acontecem, não é por acaso que elas permanecem. 
Nunca se está  preparado e imune à paixão, cada um é um ser único  que se apega, se encanta e também se decepciona. Fazer dessas histórias inspiração para versos é arte, sobreviver a tudo isso é força, saber tirar o melhor dessa ambiguidade é otimismo, não se deixar envenenar por mágoas é sabedoria, perdoar é  nobreza, aprender com a vivência é evolução  e, continuar amando é a nossa sentença.