quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Quintal

“Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucos se lembram disso”.
(Antoine de Saint-Exupéry)


A música é ferramenta milagrosa pra quem tem imaginação... Versos são capazes de mover as engrenagens da memória e nos transportar no tempo, sentindo a alegria de reviver emoções que ficaram lá pra trás, quando éramos apenas meninos e meninas, com um mundo inteiro a desvendar.
Além das lembranças, a melodia nos traz a maravilha de se sentir leve, como semente de ipê dançando ao vento, respirando com a máxima capacidade e se enchendo daquele cheiro bom que ficou lá no passado. Incrível, não é? Você já se sentiu assim? Pois é, a música é mágica, ela mexe com nossos sentidos. Ela é máquina do tempo e faz com que reencontremos a nós mesmos.
Estive, ano passado, no Festival Edésio Santos, no Centro de Cultura João Gilberto. Na ocasião conheci a música “Quintal”, de Moesio Belfort, Carlos Hyury e Eneida Trindade. Ao ouvir a música senti, a cada verso, a minha meninice descrita em detalhes tão íntimos pra mim que foi como se os autores da canção fossem aqueles meus companheiros de infância, cúmplices das minhas brincadeiras, traquinagens, segredos e temores pueris.
Quanto vale uma sensação dessas? Será que há como quantificar um valor para algo tão precioso? Não! Só a gratidão é que paga, só o reconhecimento é que pode exprimir a felicidade de se sentir representado de forma tão pura e verdadeira.
Nesses tempos em que há o crescimento de uma produção musical que degrada a imagem humana e em que nossas crianças estão cada vez mais presas à tecnologia, rodeadas de muros e cercas elétricas, trazer à tona a magnitude da liberdade de ser infante com toda essência (com seu mundo imaginário e seus brinquedos de pano, de lata e de papel) é algo de muita sensibilidade e esperança. Pois, traz à tona a nossa criança interior e, nos sequestra um pouco desse mundo que tende a encher-se de vazios existenciais na prática rotineira de ser adulto querendo “ganhar a vida” enquanto se perde, a cada dia, mais uma fração da existência.




quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Livusia

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     Quando alguém morre, chorar pelo falecido é comum. A quem ficou resta se descabelar pelo inconformismo e até não acreditar. Mas, com o tempo, quem sofreu acaba se acostumando e seguindo com a sua vida. Daí, sabiamente, se desapega de objetos do morto e se desfaz daquilo que não terá mais utilidade além de fazê-lo regressar à "presença" do defunto.
     Esse processo é complexo: deixar de lado itens que remetem a lembranças que transportam a momentos únicos que não voltarão a se repetir e, em contrapartida, sofrer ao encarar as memórias materializadas em roupas, fotografias e em locais no qual se vivenciou algo com quem se foi (para alguns pode chegar a ser como passear num museu de horrores). Não é fácil pra ninguém, isso é fato. Mas nada se compara a passar por tudo isso por alguém que está vivo, literalmente, e, morto, simbolicamente, em sua história.
     É pesaroso carregar o fardo da "perda" de alguém que se retirou por vontade própria da sua vida, jurando nunca mais voltar. Na condição de ser vivo e ativo, esse alguém pode estar ali na esquina, do outro lado da linha ou a um clique de distância, mas, inacessível, propositadamente... 
Quem foi deixado pra trás, em muitos casos, lida com o sentimento inefável do abandono, da desilusão, da impotência perante a situação... E se não há o que se fazer (por não depender somente dele) mais prudente é considerar que tudo já está feito, pois, é misterioso o campo das emoções e ser racional dessa vez pode livrar-lhe da roda das torturas que se instalou no seu coração.
Sob essa condição, o excluído, assim como um enlutado, tenta desfazer-se de tudo(possível)que traz lembranças de quem está ausente, numa tentativa desesperada de eliminar as recordações e voltar a ter paz. Como numa "fogueira santa", busca desapegar-se dessa história sabendo que, por certo tempo, ainda será perturbado e traído por seus próprios pensamentos... 
     Nessa onda de melancolia, vislumbra uma lavagem cerebral e, no limite do insuportável, da dor imensurável e subjetiva,imagina uma lobotomia ou um acidente qualquer que o faça perder a memória e esquecer essa passagem, pois, mesmo passando por todo esse conflito, indubitavelmente, é preciso se dar a chance de se refazer.
     Como se não fosse pouco tudo isso, ainda há a questão de conviver com as outras pessoas que vieram dessa relação - parentes do indivíduo, amigos em comum - e ter a disciplina para sequer tocar em seu nome ou perguntar por ele. É como se esse tal indivíduo nunca houvesse existido ou tivesse virado um fantasma, uma assombração que não se deve invocar, pois, do contrário, estaria sabotando a si próprio, mesmo que de forma involuntária, correndo o risco de viver atormentado. É estranho, mas é a realidade de muitos.
    A essa pessoa abandonada, como a quem  está em luto, é mais construtivo fluir, seguir sozinho, aceitar o lugar de cada um, respeitar as escolhas alheias, deixar que o tempo se encarregue de dizimar sua angústia e que a vida lhe traga novas oportunidades de tentar ser feliz. Lutar para não alimentar mágoas é indispensável para sua libertação.
     E, para o "morto-vivo" que lhe proporcionou essa experiência, duas ave-Marias, uma vela de sete libras e a súplica de que o Universo lhe envie toda a energia necessária para que sua alma vá para a luz. Amém.






Prece a Netuno

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"Que cada um possa encontrar seu norte
Com ou sem bússola, explorando o desconhecido
Guiado por constelações luminosas
Ou por faróis esquecidos aos olhos marejados

Que possam navegar no oceano secreto do seu 'eu'
Com perseverança para enfrentar tempestades íntimas
E serenidade para contemplar, com gratidão
A calmaria d'um horizonte apaziguado
Que haja fôlego para mergulhar nas águas profundas da vida e de si mesmo
Sem se deixar afogar em seus próprios temores e ego
Respeitando a natureza do mar que o cerca
a todas as criaturas que nele habitam
Que lhes seja concedido um porto seguro
Quando decidirem descansar o coração
E, havendo este lugar, que haja sabedoria suficiente
Para reconhecer o momento propício de recolher as velas
E guardar os remos para firmar-se em amor
A quem decidir se aventurar sem âncora
Que bons ventos soprem a seu favor
Livrando-lhe da turbulência e da fúria dos mares revoltos em rotas mal exploradas
Para que se vá ao longe e prospere em sua busca
De tal maneira que sua felicidade não morra na praia
E que suas lembranças não se resumam a acenos de cais
a lamentos de velhos naufrágios
Que exista vida nas águas que os banham
As quais lavam suas almas
E que se sintam parte do todo que contemplam
Dos grãos de areia às estrelas do céu
Aonde retornarão um dia
Levando consigo as histórias vividas
Para além da eternidade".

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Prissila com "ss" - uma nota impublicada

Nascida a 1º de Março de 1984 (um ano bissexto que quase lhe presenteia com um dado pitoresco), Prissila é uma pessoa "peculiar". Prima de seus pais, tem como apelido um nome próprio e vive a vaguear em trânsito e em transe, migrando feito borboleta monarca em direção ao seu amor, "bicicletando" por aí, distraída com capivaras preguiçosas, flores silvestres, paisagens, cheiro de chuva e pedras redondas que brotam do chão. 
Apaixonada por gatos e certos bichos penados, Prissila mantêm sob a dobra das pálpebras um bucolismo e melancolia patológicos no que se diz respeito a tornar-se inerte perante a magnitude da natureza, na contemplação paralisante que a faz transcender e sentir-se parte fundamental do imenso Universo - a força que tudo cria e destrói. 
Sem religião ou dogmas, encontra seus refúgios espirituais em qualquer altitude, debaixo de um céu estrelado, dourando num pôr-do-sol, debaixo de chuva, ouvindo a canção do vento, em contato com a água do rio, com o barro do chão e a relva orvalhada, conectada a árvores, cactos, calangos, passarinhos, formigas e borboletas. 
Fortemente ligada à natureza do seu "eu" e do mundo, sua miudeza se expande em noite de lua cheia quando ela faz fotossíntese noturna iluminada por sua eterna musa -  "la bela luna" - a qual acompanha desde a infância,hipnotizada pela sua dança etérea.
Ama a paz dos cemitérios e o milagre dos berçários. Vive em trégua com a morte e pactua firmemente com a vida que brota dos bulbos do seu cabelo e sob sua pele escamada de mutante.
 Filha da água, nativa de peixes, é romântica e demasiadamente sensível, trágica, cômica e passional. Carrega uma gama de sentimentos implícitos em algum canto obscuro da psique, o qual se revela apenas ao que impactá-la ou a quem for capaz (ou doido) de despertar seus instintos inconscientes, em algum momento propício. 
Não alimenta ambições ou projetos práticos (o que lhe atormenta às vezes)mas é dotada de muita esperança. Adapta-se a pessoas e lugares bem como é propensa a isolar-se antissocialmente pelo único bem de seu equilíbrio emocional e harmonia interior.
Prissila gosta de ficar sozinha apenas se estiver consigo mesma, pois, dessa maneira sente-se muito bem acompanhada. Julga-se a mais solitária e miserável dos seres viventes quando está entre pessoas com as quais não consegue interagir ou não pode se expressar genuinamente.
 Prissila sabe que a natureza das coisas não depende da sua vontade, não pode ser de outra forma só porque ela deseja muito que seja ou não seja. Assim, aprendeu a não se iludir e até a desconfiar. Nessa premissa, anseia para que essa bagagem não quebre os elos íntimos e valiosos que construiu e não a prive das relações altruístas que estejam a ela destinadas. 
Aqueles que estiverem guardados no baú do tesouro do seu coração jamais serão esquecidos e, mesmo distantes, a eles será dedicado o amor possível e imaginável que, pela mágica e invisível rede da amizade, os alcançará e os manterá conectados de alguma maneira.
Consegue captar amores e humores, compreende a liquidez dos sentimentos cotidianos e reconhece, tristemente, a perenidade devastadora das suas consequências.
Pode, às vezes, transparecer, duramente, um coração fechado e frio.  Porém, reconhece-se como um-todo-coração-quebrado-em-mil-pedaços, remendado e colado, refeito com dor e alegria pelos intemperes e bálsamos do tempo, como um quebra-cabeças de um cenário fascinante que nunca termina.
No que se diz humano, pouco lhe surpreende - do mel ao fel, do inferno ao paraíso. Acredita que cada um carrega em si essa dualidade (inclusive ela mesma). Seu maior temor é se deixar transformar em seu próprio carrasco, o qual age guiando sua vida pelo pântano sombrio do limbo existencial, privada de qualquer propósito que dê sentido e significado à sua vida.
E a cada conquista ou derrota, Prissila adquire mais um item para sua coleção de predicados e adjetivos inusitados, buscando preencher-se cada vez mais de si para assim ser capaz de acolher o próximo, valorizando o que a faça múltipla dentro da sua singularidade.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Chapeuzinho Vermelho


Chapeuzinho Vermelho vaga pela floresta,
Ela não tem medo do Lobo Mau,
Na verdade, ela o busca.
Saiu de casa sabendo do perigo,
Saiu sabendo onde poderia encontrá-lo
E foi pra lá, para seu habitat.
Chapeuzinho Vermelho vai ao encontro do Lobo
Levando consigo uma cesta de doces
E uma mente cheia de anseios,
Querendo viver aventuras.
Não há vilão ou vítima nessa história,
Apenas dois seres se atraindo,
Como se houvesse magnetismo entre eles.
Tendo o Lobo a sua natureza, como ele poderia negar os seus instintos?
Sendo a menina tão imatura, quem poderia julgar sua curiosidade?
É mais uma questão de lógica que de fatalidade. 
E não adianta rebuscar os miolos de pão para voltar pra casa - falamos de Chapeuzinho - João e Maria são outros quinhentos... 
Não é necessário um herói para defender sua vida, sua honra. Chapeuzinho luta com suas próprias armas e compreende bem que render-se é a sua maior vitória.
E já está tudo escrito, não adianta fugir. Perdida na densa floresta, no breu dos sentimentos conflitantes, Chapeuzinho Vermelho acaba de se encontrar.



Raposo e Mariposa

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Raposo não gosta de aros, pois, lembram-lhe elos, correntes... Que lembram prisões.
Mariposa não gosta de papéis, pois, lembram-lhe averbações, contratos... Lembram-lhe também um golpe certeiro de um jornal enrolado que a deixou um pouco mais culta, porém, tonta.
Raposo e mariposa, apesar de muito diferentes, são companheiros inseparáveis - eles se complementam.
Raposo é pé-no-chão, sabe de trilhas e tocas... Mariposa é voadora e avoada, gosta de lua e estrelas...

Ambos conhecem um pouco de muito, um tanto suficiente, embora desejem saber sempre mais, cada um à sua maneira. Porém, apreciam mais o que não sabem, os mundos distantes e particulares, aquilo que descobrem aos tropeços e encantamentos, dia-a-dia, por trás das retinas dos seus amados - Raposo e Mariposa.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Encantamento



Abstruso é descrever agora
O quão extasiante é sentir você
Sem ao menos estar ao seu lado
Sem ao menos tocá-lo
Sem ao menos vê-lo
Ou ouvi-lo

Estamos um no outro, telepaticamente
Perambulo em suas sinapses
E me sinto parte de você
Da mesma maneira que o acolho
No âmago do meu ser.

Internalizo você e me vejo em duas partes
Somadas e unidas
Na simbiose das falas
Na osmose dos pensamentos
Em tudo quanto compartilhamos
E comungamos
Depois de um longo jejum
Das almas famintas de paz

Você extirpa minhas dores
E exorciza meus demônios
Suas palavras vão além
Do que é expresso
Sintetizando todo o pulsar
Da energia que emana
Pelo magnetismo latente.

O medo que habita meu íntimo
Desaparece como faísca
Feito fumaça de incenso
E não mais me alcança
Tampouco insiste em pesar
Sobre os meus ombros cansados
O peso dos madeiros cotidianos
Da existência que me foi concedida
Algumas vezes, quase indesejada

E mesmo que eu use aqui todas as palavras
Todos os signos e símbolos
Ainda seria insuficiente
Para narrar o subjetivo
Descrever o impalpável encontro
De desígnios incógnitos
Numa breve aventura noturna
Dos amantes anônimos e castos
Felizmente satisfeitos com a transcendência
Dos desejos além do espaço-tempo

Os dizeres confundem mais que explicam
E não serão suficientes a quem quiser
Esmiuçar nossos sentimentos
Somente nós saberemos
Do instante em que não estamos juntos
Mas, unidos, como numa só consciência
Que não está disponível
A quem não está contido no poema...