Acordou com uma aura especial, brilhante. Ao
abrir os olhos no despertar, antes das sete, esqueceu o travesseiro úmido de
lágrimas que lhe fizera companhia até que o sono lhe tomasse os sentidos.
Dormiu bem, estava disposta e fez o café como a esforçada dona de casa que era.
Despiu-se da tristeza de sufocar e encurtar respostas ao companheiro e, mesmo
sem muito assunto, tratou-o o com carinho e respeito, zelosa como sempre.
Embora a mágoa por se sentir culpada pelas
sucessões de desentendimentos que geraram
indiferença e silêncio (ensurdecedor) entre o par, compartilhava com o
companheiro um certo ar de raiva, mesmo apenas de si mesma. O vão que se
tornara aquele pequeno apartamento fazia as mínimas palavras que eram
pronunciadas ganharem tom de eco, como numa catedral gótica, como numa caverna
escura, cheia de morcegos - e ela se sentia como um morcego, ali, inútil,
gritando ao eco, sem nenhuma resposta a não ser sua própria voz latejando
dentro de si.
Depois do café, ingerido rapidamente, não fez
muitas perguntas e despediu-se do companheiro como quem acabara de mandar um
filho para a guerra. Aquele “até mais” soava como apito de navio militar a
cruzar o Atlântico, pois, ao reencontrá-lo, não seriam mais os mesmos, embora
soubesse que nada mudaria entre eles.
Então, deixou-se encortinar por revigorantes
gotas de água cuidando para não comprometer o penteado, meticulosamente
arrumado para o momento. Sem muito requinte ou romantismo, escolheu uma
vestimenta sóbria, ao nível de sua fisionomia séria, mascarando flores,
borboletas e os rouxinóis que gorjeavam num canto escondido de seu mundo
interior. Perfumou-se como uma lady e
pôs seus óculos escuros escondendo o cintilar de suas claras íris acastanhadas.
Desceu as escadas e deixou sua casa. Deslumbrou o sol como quem encontrava um
amigo, saudando-o e logo despediu-se embaixo de uma sombrinha. .
Resolveu pendências e pagou contas, afinal,
era uma quarta-feira comum da peleja semanal mas, trafegou vagarosamente entre
os passantes, atravessou faixas de pedestres, leve, nos poucos segundos que
lhes foram permitidos para completar o percurso ao atravessar a avenida.
Chegando ao seu destino final, esperou que
viessem ao seu encontro as duas testemunhas daquele ato (im)pensado. E vieram,
atarantadas com o horário, preocupadas em cumprir suas obrigações cotidianas. E
chegou-se o cônjuge, sorrindo maroto como um moleque, mostrando o ar que há
pouco deixara implícito na fumaça do café. Ela estava séria, não ria nem se
comovia com aquele que um dia fora tão esperado e idealizado. Nada de ilusões
românticas, estava ali para assinar papéis, pagar taxas e adentrar ao hall das mulheres casadas, as mulheres
de respeito.
O companheiro estranhava tal frieza mas ela
agia naturalmente - assim achava - não encontrava motivos para agir diferente.
Não estava sendo mal educada nem rancorosa, estava apenas ausente de si,
tentando se portar burocrática como o timbre dos papéis que assinaria,
respondendo apenas o necessário, com tom baixo para não chamar atenção para si.
Não é que não queria estar ali, ela apenas não queria ser ela naquele momento.
Queria ser quem nunca foi, quem sabe assim alguém a levaria a sério, como levam
a sério os papéis timbrados.
E enfim, após subidas e descidas, pagamentos
e assinaturas, estavam civilmenente casados. Sentia que acabara de assinar sua
carta de alforria, que agora sim poderia se libertar das preocupações alheias e
poder viver sua solidão acompanhada em paz, já que agora era bem vista pela
sociedade.
Ela ainda não sorria, nem quis registrar o
momento em fotografias. Por estar muito séria, achava sua fisionomia quase
triste e não queria que alguém a visse assim, não queria sequer pensar em rever
aquela cena e sentir-se estranha… Era como se ela não estivesse mesmo satisfeita,
como se estivesse ali à força, sentia náuseas, tinha leves vertigens. Na
verdade, forçara demais ao tentar esconder seu eu e já não se aguentava dentro
de si, estava enjaulada, presa naquela casca, manchada com a tinta dos
carimbos.
E quando tudo havia acabado, foi convidada a
voltar na garupa da bicicleta amarela do seu príncipe desencantado. Depois de
algumas pedaladas, respirava melhor, pois, agora era ela, agora sim! Sentia o
vento entre os cachos negros do seu cabelo, ruborizava a face com o sol, sorria
para os passarinhos e cantava com eles. Seu príncipe voltou à labuta e ela
seguiu rumo à floricultura. Vagou entre os corredores úmidos daquela casa
florida e escolheu um trevo-de-quatro-folhas - era o seu dia de sorte, ela
sempre soube disso. Comprou também pequenos pacotes de sementes de plantas
floridas, sonhava poder semear o asfalto e fertilizar seu caminho com o sorriso
que há muito estava apagado.
Ela havia se libertado, ela se deixava
transitar novamente por entre as rimas e as canções. Ela quase dançava pela
rua, ela estava feliz! Sentia que fazia parte de algo maior que si mesma. De
certa forma, confirmava seu amor naquela anti-romântica folha timbrada. Seu
nome e o nome dele, bem juntinhos, escrevendo uma parte da história que não era
recente, mas, que a surpreendia e a fazia cada vez mais contente e agradecida
por estar ao lado do novo (e grande!) amor da sua vida.
Prissila de Castro Paes,
Juazeiro, quarta-feira, 01 de outubro
de 2014, 22:32 hs.