segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Carta de alforria



Acordou com uma aura especial, brilhante. Ao abrir os olhos no despertar, antes das sete, esqueceu o travesseiro úmido de lágrimas que lhe fizera companhia até que o sono lhe tomasse os sentidos. Dormiu bem, estava disposta e fez o café como a esforçada dona de casa que era. Despiu-se da tristeza de sufocar e encurtar respostas ao companheiro e, mesmo sem muito assunto, tratou-o o com carinho e respeito, zelosa como sempre.
Embora a mágoa por se sentir culpada pelas sucessões de desentendimentos que geraram  indiferença e silêncio (ensurdecedor) entre o par, compartilhava com o companheiro um certo ar de raiva, mesmo apenas de si mesma. O vão que se tornara aquele pequeno apartamento fazia as mínimas palavras que eram pronunciadas ganharem tom de eco, como numa catedral gótica, como numa caverna escura, cheia de morcegos - e ela se sentia como um morcego, ali, inútil, gritando ao eco, sem nenhuma resposta a não ser sua própria voz latejando dentro de si.
Depois do café, ingerido rapidamente, não fez muitas perguntas e despediu-se do companheiro como quem acabara de mandar um filho para a guerra. Aquele “até mais” soava como apito de navio militar a cruzar o Atlântico, pois, ao reencontrá-lo, não seriam mais os mesmos, embora soubesse que nada mudaria entre eles.
Então, deixou-se encortinar por revigorantes gotas de água cuidando para não comprometer o penteado, meticulosamente arrumado para o momento. Sem muito requinte ou romantismo, escolheu uma vestimenta sóbria, ao nível de sua fisionomia séria, mascarando flores, borboletas e os rouxinóis que gorjeavam num canto escondido de seu mundo interior. Perfumou-se como uma lady e pôs seus óculos escuros escondendo o cintilar de suas claras íris acastanhadas. Desceu as escadas e deixou sua casa. Deslumbrou o sol como quem encontrava um amigo, saudando-o e logo despediu-se embaixo de uma sombrinha. .
Resolveu pendências e pagou contas, afinal, era uma quarta-feira comum da peleja semanal mas, trafegou vagarosamente entre os passantes, atravessou faixas de pedestres, leve, nos poucos segundos que lhes foram permitidos para completar o percurso ao atravessar a avenida.
Chegando ao seu destino final, esperou que viessem ao seu encontro as duas testemunhas daquele ato (im)pensado. E vieram, atarantadas com o horário, preocupadas em cumprir suas obrigações cotidianas. E chegou-se o cônjuge, sorrindo maroto como um moleque, mostrando o ar que há pouco deixara implícito na fumaça do café. Ela estava séria, não ria nem se comovia com aquele que um dia fora tão esperado e idealizado. Nada de ilusões românticas, estava ali para assinar papéis, pagar taxas e adentrar ao hall das mulheres casadas, as mulheres de respeito.
O companheiro estranhava tal frieza mas ela agia naturalmente - assim achava - não encontrava motivos para agir diferente. Não estava sendo mal educada nem rancorosa, estava apenas ausente de si, tentando se portar burocrática como o timbre dos papéis que assinaria, respondendo apenas o necessário, com tom baixo para não chamar atenção para si. Não é que não queria estar ali, ela apenas não queria ser ela naquele momento. Queria ser quem nunca foi, quem sabe assim alguém a levaria a sério, como levam a sério os papéis timbrados.
E enfim, após subidas e descidas, pagamentos e assinaturas, estavam civilmenente casados. Sentia que acabara de assinar sua carta de alforria, que agora sim poderia se libertar das preocupações alheias e poder viver sua solidão acompanhada em paz, já que agora era bem vista pela sociedade.
Ela ainda não sorria, nem quis registrar o momento em fotografias. Por estar muito séria, achava sua fisionomia quase triste e não queria que alguém a visse assim, não queria sequer pensar em rever aquela cena e sentir-se estranha… Era como se ela não estivesse mesmo satisfeita, como se estivesse ali à força, sentia náuseas, tinha leves vertigens. Na verdade, forçara demais ao tentar esconder seu eu e já não se aguentava dentro de si, estava enjaulada, presa naquela casca, manchada com a tinta dos carimbos.
E quando tudo havia acabado, foi convidada a voltar na garupa da bicicleta amarela do seu príncipe desencantado. Depois de algumas pedaladas, respirava melhor, pois, agora era ela, agora sim! Sentia o vento entre os cachos negros do seu cabelo, ruborizava a face com o sol, sorria para os passarinhos e cantava com eles. Seu príncipe voltou à labuta e ela seguiu rumo à floricultura. Vagou entre os corredores úmidos daquela casa florida e escolheu um trevo-de-quatro-folhas - era o seu dia de sorte, ela sempre soube disso. Comprou também pequenos pacotes de sementes de plantas floridas, sonhava poder semear o asfalto e fertilizar seu caminho com o sorriso que há muito estava apagado.
Ela havia se libertado, ela se deixava transitar novamente por entre as rimas e as canções. Ela quase dançava pela rua, ela estava feliz! Sentia que fazia parte de algo maior que si mesma. De certa forma, confirmava seu amor naquela anti-romântica folha timbrada. Seu nome e o nome dele, bem juntinhos, escrevendo uma parte da história que não era recente, mas, que a surpreendia e a fazia cada vez mais contente e agradecida por estar ao lado do novo (e grande!) amor da sua vida.

Prissila de Castro Paes,

Juazeiro, quarta-feira, 01 de outubro de 2014, 22:32 hs.